"(...) Foram necessários 45 anos para que Rayuela, de Cortázar, chegasse a ter uma edição portuguesa, esta edição. Se considerarmos que se trata do livro incontornável de um autor incontornável na literatura do século XX, é fácil constatar que 45 anos é uma espera demasiado grande. E, no entanto, esse foi o tempo necessário para que Rayuela chegasse a ser
O Jogo do Mundo, o livro que tem neste momento em mãos. Parece-me que todas as editoras portuguesas, desde 1963 até aos nossos dias, deveriam sentir algum embaraço (pelo menos) perante este facto.
Foneticamente, Rayuela é uma palavra que rola pelo interior da boca, como um doce que se desfaz, mas é também verdade que
O Jogo do Mundo é um bom compromisso para um título que não é fácil de traduzir em todas as suas tonalidades. De um modo literal,
rayuela significa jogo da macaca, esse jogo no qual se atira um seixo e se salta ao pé coxinho. (...) a ideia e a imagem desse jogo estão ligadas a um aspecto que talvez seja o mais referido quando se fala deste livro: a sua forma.
No seu início, o leitor encontra uma tábua de orientação que sinaliza dois modos de ler este texto de Cortázar. Hoje, 45 anos depois, já é possível acrescentar que, para além das possibilidades indicadas pelo autor, têm sido sugeridas várias outras. Este é um livro que, em nenhum momento, minimiza o seu leitor, facilitando-lhe o que quer que seja. Este é um livro que convoca cada leitor para dentro de si, que o solta num labirinto sem lhe indicar a real saída, nem sequer se existe mesmo uma saída. O facto de não haver uma ordem única de leitura é um convite ao leitor intrépido para que arrisque a encontrar os seus próprios caminhos nesta obra. Assim como o terá de fazer neste jogo que, como indica o título português, é o mundo, é a vida. Isto porque é a própria vida que nos é apresentada de um lado e de outro. A vida, para a qual não existe qualquer tábua de orientação. Não creio que esteja a revelar demasiado se disser que é também assim que Horacio Oliveira, o protagonista, sente as imagens e as ideias que flutuam diante de si, consigo. O caos em luta permanente com a ordem: vitórias para ambos os lados.
(...)Como em todos os grandes livros, existe a procura do novo, mas aquilo que se alcança não é uma imagem da própria experimentação, aquilo que se alcança é o contemporâneo que, a avaliar pelos 45 anos de vida que já tem, continua e continuará sempre a ser contemporâneo. As meditações, as discussões filosóficas e literárias, frequentes nestas páginas, são de uma actualidade feroz. Além disso, este O Jogo do Mundo e, também, um livro de prazeres literários tradicionais, como sejam aqueles que advêm de uma caracterização muitíssimo rica das personagens e dos lugares, de uma linguagem variada e imaginativa, com excelentes diálogos e um domínio extraordinário do simbólico e do metafórico. Mas ninguém que conheça a excelência dos contos de Cortázar se poderá surpreender com a mestria que demonstra nesta longa múltipla unidade - se me é permitido o paradoxo. (...) 'o leitor prescindirá de ler o que se segue sem grandes remorsos'. Pela minha parte, a partir do lugar onde me encontro, nunca saberia como considerar dispensável a leitura dessas páginas. Já este prefácio nunca teve a intenção de não o ser. Quem não o tiver lido, seguirá sem remorsos grandes ou pequenos por tudo que aí vêm. (...) a esse potencial leitor indeciso este prefácio quer dizer: sim, deve ler este livro.
Mais nada. O indispensável começa depois desta última palavra."
José Luís Peixoto in Prefácio dispensável à primeira edição em Portugal de O Jogo do Mundo, tradução de Rayuela, de Julio Cortázar, publicada em 2008, pela Cavalo de Ferro Editores.
Extraído de www.cavalodeferro.com
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